quinta-feira, 13 de março de 2014

Neutralidade da rede - Parte 2: Por que ela é importante

Na primeira parte desse post, eu discuti as relações comerciais entre os usuários, os provedores de banda larga e os Backbones, os grandes provedores de internet.

Nesta segunda parte, eu agora discuto a neutralidade da rede dentro desse contexto.

Resumo da primeira parte

  • Usuários pagam aos provedores de banda larga para terem acesso a internet.
  • O valor pago é proporcional ao tamanho da banda disponível.
  • Os provedores, por sua vez, pagam para se conectar aos outros provedores e aos Backbones.
  • A lógica de pagamento é a mesma, porém confiabilidade do canal é um fator tão importante quanto a banda disponível.
  • Os provedores tipicamente vendem mais banda que possuem porque:
    • É caro adquirir/construir/manter um canal maior
    • Na maior parte do tempo, o canal é 100% utilizado

Neutralidade da Rede

Agora que sabemos como funcionam as relações de dinheiro entre usuários, provedores e backbones, eu afirmo o seguinte: nenhuma dessas relações afeta a neutralidade da rede. A razão é que, embora a pagamento seja diferenciado pelo tamanho e qualidade da banda, nenhum aplicativo ou site tem maior ou menor prioridade em enviar ou receber seus pacotes pelo canal. Assim, temos a primeira e mais simples definição de uma rede neutra:

Uma rede é considerada neutra se ela não diferencia (de modo benéfico ou não) os pacotes enviados ou recebidos por um aplicativo ou site.

Novamente, fazendo uma analogia com as rodovias. Embora possam haver rodovias pagas e gratuitas, uma vez que um veículo entrou na rodovia de sua escolha, ele não tem prioridade maior ou menor do que qualquer outro veículo nessa mesma rodovia e portanto, está sujeito aos mesmo benefícios e problemas relacionados ao tráfego.

Veja a seguinte figura de uma casa com acesso a internet e um conjunto de aplicativos que os moradores acessam:



Netflix e YouTube são aplicativos de vídeo; Google é um site de busca; Facebook é uma rede social; WhatsApp é um aplicativo de envio de mensagens e Flickr é um site de fotos. Cada um desses aplicativos possuem necessidades de uso de banda diferente. Aplicativos de vídeo demandam muito mais do que um site de busca, por exemplo.

Mas, como a rede é neutra, nenhum desses aplicativos possui algum privilégio na hora de enviar os seus pacotes. Todos compartilham a banda disponível conforme as suas necessidades de transmissão e se mais de um aplicativo estiver sendo utilizado ao mesmo tempo, ou mais de um usuário estiver acessando a internet, nenhum deles conseguirá ter toda a banda disponível para si.

Com a proliferação de serviços úteis e com cada vez mais dispositivos conectados, é cada vez mais comum que os usuários utilizem (ou queiram utilizar) 100% da sua banda disponível por períodos cada vez maiores.

Quebrando a neutralidade

Priorização de tráfego

Lembra quando eu falei que fazia sentido vender mais banda do que a disponível? Isso continua fazendo sentido, mas agora que a banda contratada pelos usuários está sendo mais utilizada, os usuários percebem que é difícil atingir a velocidade máxima contratada. E reclamam com muita razão.

Para melhorar a experiência do usuário, o provedor pode pagar por um canal maior ou por canais extras que seriam ligados apenas nos momentos de picos e/ou melhorar a qualidade e a manutenção do canal. Uma outra opção seria priorizar o tráfego de determinados aplicativos.

Mais uma vez, a rodovia. O dono da rodovia pode optar por aumentar o número de faixas da rodovia inteira (pagar por um canal maior), criar faixas extras nos pontos de maior tráfego (pagar por canais extras em momentos de pico) ou criar faixas exclusivas para caminhões e ônibus, além das que já existem (priorizar o tráfego).

Priorização de tráfego não é uma idéia nova e não necessariamente quebra a neutralidade da rede. Qualquer pessoa com um pouco de conhecimento de redes e roteadores pode configurar o seu modem/roteador para priorizar os dados de um aplicativo que acessa o seu canal de internet.

Ao contratar canais extras para serem ligados em momentos de pico, muitos provedores aproveitam para mandar os dados vindos de sites volumosos por esses canais, para que a experiência do usuário de outros aplicativos não seja afetada.

Por exemplo, aplicativos de telefonia via internet poderiam ter sua prioridade aumentada em relação a aplicativos de mensagens de texto, porque voz requere transmissão em tempo real, enquanto mensagens de texto podem sofrer atrás de alguns segundos sem prejudicar os usuários, na maiora dos casos.

Na minha opinião, a neutralidade é quebrada quando você oferece aos donos dos sites e aplicativos a possibilidade de pagar por essa priorização. E aí temos a segunda definição de neutralidade de rede:

Uma rede é considerada neutra se a priorização de trafego de dados de aplicativos, quando realizada, tem por objetivo melhorar a experiência de todos os usuários e de todos os aplicativos E não pode ser comprada pelos donos dos aplicativos.

Por comprada, entenda qualquer tipo de relação entre a empresa dona do aplicativo e o provedor de dados em que o usuário é beneficiado de alguma forma.

E mais um exemplo de rodovia. Imagine que a montadora de carros GPSE fizesse uma pareceria com um dono de uma rodovia bastante utilizada, de tal modo que carros da sua marca fossem isentos de pedágio. É fácil ver o benefício para os dono de carro GPSE, mas qual é o impacto disso para as outras montadoras?

Se o motorista utiliza a rodovia com frequência, a sua tendência vai ser a de, quando for trocar de carro, comprar um da marca GPSE. Com isso as outras montadoras perdem vendas e seriam obrigadas a tentarem fazer o mesmo acordo ou outro semelhante para se manterem competitivas.

Eu escolhi montadoras de propósito, porque a imagem que temos delas é de que são grandes e no pior caso, poderiam todas fazerem acordos para evitar que seus clientes troquem a marca dos seus carros.

Trazendo de volta para o mundo da internet, imagine uma pequena empresa que criou um aplicativo novo. No entanto, os seus concorrentes mais estabelecidos firmaram acordos comerciais com os provedores de dados para que seus usuários recebem um desconto na mensalidade do provedor caso acessem suas redes por no mínimo 1 hora por dia, todo dia.

Mesmo que o aplicativo novo seja bom, ele não consegue competir no mesmo nívelcom os seus concorrentes. Se pagar passa a ser uma opção para proteger o seu mercado, há menos incentivos para empresas novas surgirem. A longo prazo, isso acabaria com a inovação na internet.

Conclusão

Parabéns, você conseguiu chegar até aqui! :)

Se você leu o texto inteiro, deve ter entendido que há benefícios imediatos para os usuários de redes onde a rede não é neutra e há grandes benefícios para os donos da redes não-neutras que podem cobrar por serviços diferenciados tanto aos donos de aplicativos como aos usuários.

Mas espero ter lhe convencido que ao quebrar a neutralidade, os benefícios de curto prazo serão esquecidos quando a longo prazo tirarmos da internet a propriedade que a fez ser o que é hoje: a de ser um campo livre onde qualquer pessoa ou grupo que tenha uma idéia e que tenha acesso pode inventar o próximo grande negócio de tecnologia.

Neutralidade da rede - Parte 1: Os usuários e os provedores de Internet

Já que não achei mais correntes estapafúrdias para comentar (mandem as que vocês acharem! :P), resolvi comentar um assunto que está sendo bastante debatido: o marco civil da internet. Especificamente, eu vou tratar da neutralidade da rede e por que ela é essencial para que a inovação na Internet continue acontecendo.

Por ser um assunto bastante extenso e merece ser tratado com cuidado, eu dividi o post em dois. Na primeira parte (esse post), eu discuto as relações de dinheiro entre os usuários, os provedores de banda larga e os Backbones, os grandes provedores de internet.

Na segunda parte, eu trato da neutralidade dentro desse contexto.

A relação entre o provedor e o usuário.

Funciona assim: você contrata um provedor de banda larga PBL1 e paga a ele um valor para ter direito a tantos megabits por segundo de banda. Todo vez que você quer acessar um site ou usar um aplicativo que acesse a internet, o seu computador se conecta na rede do PBL1 e envia e recebe os dados necessários. Simplificando, temos a figura a seguir:



Nesse exemplo, temos 3 casas conectadas a PBL1, cada uma com uma velocidade diferente. PBL1 pode cobrar valores diferentes pelas conexões, pois bandas maiores presumem volume de tráfego maiores.

Fazendo uma analogia, imagine uma rodovia com 5 faixas distintas. 2 delas são oferecidas sem custo aos motoristas e possuem velocidade máxima de 60km/h. As outras 3 são oferecidas mediante pedágio, mas possuem velocidade máxima de 110km/h.

A relação entre os provedores

Na imagem anterior, eu coloquei uma seta com o tamanho da banda de PBL1 conectada na internet. Vamos expandir isso como na figura seguinte:



Nessa imagem, temos 3 provedores (PBL1, PBL2, PBL3), três Backbones (BB1, BB2, BB3) e uma empresa (E1).  Backbones são grandes provedores de dados que tipicamente fazem as interconexões entre os provedores. Os seus canais de dados são geralmente bem maiores, mais confiáves e, portanto, são mais caros. Não é incomum empresas de médio/grande porte pagarem por um canal a um Backbone exatamente por oferecerem um canal de melhor qualidade.

Voltando a analogia da rodovia, imagine que existam duas rodovias entre as cidades de Belo Horizonte e Itaúna. As duas possuem velocidade máxima de 110km/h, mas uma delas cobra pedágio porque faz manutenção com maior frequência. A rodovia mais bem cuidada permite que os motoristas trafeguem a maior parte do tempo na velocidade máxima.

Aqui, temos um cenário análago ao do usuário com o provedor: os provedores podem escolher se conectar a Backbones ou a outros provedores e pagar proporcionalmente ao tamanho e a confiabilidade do seu canal.

Por que faz sentido vender mais banda do que disponível

Vamos ver novamente a figura das casas conectadas ao provedor de banda larga, mas agora com um pequena diferença:


Notem que agora PBL1 possui um canal de 24 Mbps com a internet. No entanto, a soma das bandas contratadas pelas casas é de 32 Mbps. Isso quer dizer que se as três casas estiverem acessando a internet ao mesmo tempo, e assumirmos que o canal da internet é dividido igualmente entre as casas, apenas a casa com 7 Mbps atingirá a sua velocidade máxima. As outras duas atingirão no máximo 8.5 Mbps.

Voltando mais uma vez para a rodovia. Para que todos os veículos trafegando na rodovia consigam manter a velocidade máxima, o número de veículos não pode passar de um determinado limite. Acima dele, é perigoso manter a velocidade máxima e portanto os motoristas tendem a diminuir a velocidade para manter a segurança.

Na internet, ocorre a mesma coisa. Quando se quer transferir um arquivo qualquer (imagem, text, video, etc), esse arquivo é primeiro dividido em vários pedaços menores chamados pacotes. A quantidade de pacotes presentes ao mesmo tempo no canal é proporcional ao tamanho desse canal. Se tem mais pacotes que canal disponível, eles vão esperar ter espaço no canal para serem transmitidos e portanto a velocidade da transmissão vai ser menor.

Por que os provedores fazem isso? Pelo mesmo motivo das rodovias:
  1. É caro adquirir/construir/manter um canal maior;
  2. Na maior parte do tempo, o canal não é 100% utilizado.


Resumo antes de falarmos de neutralidade

  • Usuários pagam aos provedores de banda larga para terem acesso a internet.
  • O valor pago é proporcional ao tamanho da banda disponível.
  • Os provedores, por sua vez, pagam para se conectar aos outros provedores e aos Backbones.
  • A lógica de pagamento é a mesma, porém confiabilidade do canal é um fator tão importante quanto a banda disponível.
  • Os provedores tipicamente vendem mais banda que possuem porque:
    • É caro adquirir/construir/manter um canal maior
    • Na maior parte do tempo, o canal é 100% utilizado
Agora, vá para a segunda parte do post.